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domingo, 30 de setembro de 2012

O primeiro reino de Pelé: lembranças e histórias do mito em Três Corações


É domingo, 23 de setembro de 2012, em Três Corações, cidade de ruas estreitas, de olhar contemplativo, de horas que dão tempo ao tempo. Pelé, acompanhado de Edinho, adentra uma casa. Na casa, adentra um quarto. No quarto, olha para uma caminha, com uma roupa de bebê sobre ela, e balbucia para o filho:
- É meu berço...
Não é. O berço onde Pelé primeiro agitou suas pernas foi destruído pelo tempo. A exemplo do quarto. A exemplo da casa. O que encanta o maior jogador de futebol de todos os tempos é, na verdade, uma réplica do cenário de sua infância. Foi tudo reconstruído - cada parede, cada porta, cada móvel -, em um gesto da cidade do Sul de Minas Gerais para se reaproximar de seu filho mais ilustre.
Pelé árvore comemoração Três Corações especial (Foto: Alexandre Alliatti / Globoesporte.com)
No mesmo domingo em que inaugurou a réplica de sua casa (agora aberta ao público), Pelé concedeu uma entrevista coletiva no salão onde um hotel de Três Corações serve o café da manhã a seus hóspedes. O clima, inclusive entre jornalistas da região, era de encantamento - um repórter chegou a perguntar ao organizador do evento se deveria aplaudir o ex-jogador quando ele chegasse. Mesmo assim, a primeira pergunta direcionada a Pelé foi seca: por que ele não ia a Três Corações desde 1987?
Pelé comemoração Três Corações especial (Foto: Alexandre Alliatti / Globoesporte.com)
O Rei não gostou. Disse (em tom amável, mas disse) que o perguntador estava mal-informado. Garantiu que havia visitado a cidade uns dois ou três anos atrás. Mas o próprio perfil de Pelé no Twitter informou que sua última aparição em Três Corações datava de 25 anos. Nenhuma das dezenas de pessoas com quem a reportagem do GLOBOESPORTE.COM conversou durante quatro dias na cidade tinha lembranças da recente visita mencionada pelo mito.
O distanciamento entre Três Corações e Pelé vinha incomodando boa parte dos tricordianos. O município passou anos sem se preocupar em vincular seu nome a um dos sujeitos mais famosos que a humanidade já criou. Tinha duas estátuas, um pedaço da Casa de Cultura e uma rua dedicadas a ele. Muito concreto e pouca ação prática. O argumento de que é difícil levar Pelé à cidade não convencia mais, especialmente na comparação com o alarde que Varginha, cidade vizinha e um pouco rival, faz com um ET que, dizem, foi visto por lá.
- O ET nunca vai a Varginha e tem uma festa do caramba para ele - resumiu Adílson Paiva, figura popular na cidade, um dos jogadores mais talentosos que a região já conheceu.
Nos anos seguintes, Três Corações mais pediu ajuda financeira a Pelé do que soube usar sua marca. Houve casos em que governantes da cidade e dirigentes do clube solicitaram a ele (inclusive quando foi ministro do esporte, nos anos 90) jogos de camisas e conjuntos de bolas. Faltava algo permanente, que atraísse turistas, que vinculasse o mito a seu berço. A esperança é de que a inauguração da casa comece a eliminar esse vácuo.A inauguração da casa de Pelé foi o evento mais marcante da cidade desde 1971, quando o ex-camisa 10, recém-saído do tricampeonato mundial com a seleção brasileira, foi a Três Corações com o Santos para um amistoso contra o Atlético Tricordiano. O time local venceu por 2 a 1, e Adílson Paiva, mencionado acima, fez o gol da vitória.
- Com esse evento, vou ficar aqui até a morte. Essa casa vai ficar me representando - disse Pelé no domingo.
O retorno a Três Corações foi uma redescoberta para Pelé. Ele deixou a cidade muito novo, com menos de cinco anos - segundo dona Celeste, mãe dele, o menino ficou lá até os três anos e meio, mas há outras versões. Foram tempos de pobreza, mas de brincadeiras e de aprendizado para o pequeno Edson, inicialmente apelidado de Dico - para depois ganhar a eternidade como Pelé.
certidão de nascimento Pelé Três Corações especial (Foto: Alexandre Alliatti / Globoesporte.com)
A infância do Rei
Pelé com seu irmão, Zoca (Foto: Arquivo Pessoal)
Rua Edson Arantes do Nascimento, número 1.000. O endereço indica que aquela não é uma casa qualquer. A moradia, construída há 102 anos, foi a base do lar capitaneado por Jorge Lino Arantes e Maria Naves. Eles tiveram dez filhos. A oitava da lista foi Celeste, que viria a se casar com João Ramos do Nascimento, popularmente conhecido como Dondinho, atacante dos bons, cabeceador raro. Em 23 de outubro de 1940, nasceu Pelé, neto de Jorge e Maria, filho de Celeste e Dondinho - uma certidão de nascimento exposta em uma cantina da cidade data seu nascimento para dois dias antes e erra o nome dele, grafado como Edison, com i.
Foi ali que ele passou os primeiros anos de vida. A família tinha dificuldades financeiras. Jorge carregava lenhas em uma carroça. Dondinho juntava trocados jogando futebol ou fazendo bicos como pintor. Amigos ajudavam como podiam. Enquanto isso, crescia um menino brincalhão, forte, mas que pouca atenção chamava dos vizinhos. Dico, eventualmente, brincava com as crianças na rua. Mas os olhares do tio Jorge, vigilantes, estavam sempre focados nele. E a criança ficava mais no pátio do que além do portão de madeira.
avós Pelé casa Três Corações especial (Foto: Alexandre Alliatti / Globoesporte.com)
Ele gostava mesmo era das jabuticabeiras. Via as bolinhas pretas e se espichava para catá-las. Não conseguia. Os galhos eram altos. A solução vinha mais tarde, quando seu avô chegava com a carroça. Pelé subia nela e, enfim, podia colher os frutos.
Perto dali, no estádio municipal, o Atlético era a sensação da cidade. E Dondinho, o pai de Pelé, iniciava a linhagem de estrelato da família. Em Três Corações, ele era o cara: adorado pelos companheiros, observado pelas mulheres, temido pelos zagueiros. Aos primeiros, oferecia sua amizade, seu companheirismo, uma fidelidade quase canina; às segundas, entregava seu charme de sedutor nato, de mulherengo instintivo; aos terceiros, fornecia derrotas implacáveis. Chegou a jogar no Atlético-MG, mas foi prejudicado por uma lesão no joelho.
Pele Dondinho Zoca (Foto: Ag. Estado)
A turma era das boas. Zezinho, Dunga, Fuad. E Nhozinho. Deles, quem sobrou foi Nhozinho. Tem 93 anos. Era lateral-direito do Raul Chaves, rival do Atlético na cidade. Mas reforçava o adversário contra oponentes de outras cidades. E fazia a festa de Dondinho. Cruzava na cabeça dele. E cruzamento na cabeça dele, diz a unanimidade em Três Corações, era gol.
- Eu não tinha nada a fazer, exceto cruzar a bola. Não tinha ninguém igual ao Dondinho. Não é uma questão de ser melhor ou pior: não tinha igual. Ele fazia gol a toda hora - lembra o ex-lateral.
Nhozinho tem saudade daquela época. Hora dessas, quer bater um papo com Dunga, zagueirão que protegia suas escapulidas ao ataque. Também quer prosear com Dondinho, lembrar os tantos gols que lhe deu de presente. Não lembra que ambos estão mortos. Não lembra que é o único atleta daqueles tempos ainda vivo.
- Tenho saudade dos companheiros. Fizemos muitas amizades. O Dondinho é gente boa. Gosta de contar anedotadas. Dá saudade às vezes...
Nhozinho, Dondinho, Dunga, Fuad e outros integrantes da turma participaram da conquista da Taça Guaraína em 1941. Foi feito um combinado de atletas da cidade (quase todos do Atlético) para a disputa do torneio na região. A rivalidade com Varginha foi levada ao extremo. E o time da cidade ganhou - Dondinho, claro, foi o destaque. Virou herói de vez. É, até hoje, a maior conquista do clube - ou a mais comentada, pelo menos.
Pelé na barbearia de Dunga (Foto: Arquivo Pessoal)
Victor Cunha, historiador da cidade, memória ambulante de Três Corações, lembra desse período. E lembra de Pelé, pequenino, acompanhando o pai até o estádio.
- O Dondinho era craque. Craque mesmo. Eu lembro do Pelé descendo de mãos dadas com ele para o campo. Disso eu lembro. O Dunga brincava muito com ele. Lembro dele chegando no campo. Ia muito em dia de jogo. Ficava lá com dona Celeste. Era uma criancinha - recorda Victor Cunha.
Criou-se, com base no futebol, uma grande família. Daniel Amadeu, 79 anos, lembra daquela época. Beirava os dez anos quando via o pequeno Dico, que depois viraria Pelé, brincando nas redondezas.
- Meu pai tinha uma mercearia na esquina e dava balas para o Pelé. Ninguém podia imaginar quem ele se tornaria. Era um menino muito tranquilo, como toda a família. O pai dele era uma pessoa de muito bom trato, muito educado, um fenômeno no futebol. O Pelé tem o futebol no gene, no sangue - comenta Daniel.
Dondinho era muito próximo de outro colega de time, Zezinho. Ele virou padrinho de Pelé. Sua esposa, dona Maria, automaticamente se tornou madrinha do menino. Ela tem 90 anos. No domingo passado, deu um abraço apertado em seu afilhado. Lembrou daquele menino de sete décadas atrás.
- Ele brincava muito. Era um menino levado. Brincava muito com outras crianças na frente da casa dele. Desde criança, a única coisa que ele gostava de ganhar era bola - lembra dona Maria.
galeria Pelé Três Corações Personagens (Foto: Editoria de Arte / Globoesporte.com)
Pelé chegou a Bauru (SP) em 1945, com quase cinco anos. Mas é difícil estabelecer exatamente quando ele deixou Três Corações. Há versões que apontam para um, dois, três, quatro e cinco anos de idade. Há dados controversos na cidade. Se Pelé recorda subir na carroça do avô para colher jabuticabas, não podia ser tão novo quando deixou a cidade. Por outro lado, algumas histórias contadas em Três Corações não encaixam no período em que ele viveu lá. Uma senhora de 70 anos, por exemplo, relata que uma vez Pelé puxou as tranças de seu cabelo e disse que casaria com ela. Em troca, ela garante que atirou uma pedra na cabeça dele. Teria o pequeno Edson idade suficiente para isso?
A passagem do tempo prejudica a memória sobre o curto período em que Pelé viveu em Três Corações. O interesse histórico de algumas pessoas da cidade (casos de Victor Cunha, citado acima, e de Jorge Bogarim, comerciante da cidade e ex-goleiro do Atlético Tricordiano) permite a conservação de documentos e lembranças dos anos 40.
Mas a herança oral começa a ficar confusa. Para isso, pesam duas questões: a idade avançada de boa parte das testemunhas daquele período e a escassez de parentes próximos ao Rei na cidade. Os familiares mais ligados a Pelé em Três Corações são dois primos de primeiro grau: Jorge, que durante a semana carregava uma camiseta autografada por ele, e Terezinha.
Há mais parentes dele, por exemplo, em Volta Redonda (RJ) do que na cidade mineira. É o caso de Severino Gonzaga, o Biroca, primo de Pelé. Ele tem a mesma idade do ex-jogador. Viveu na mesma casa. Brincava com ele nas jabuticabeiras.
- Meu avô vendia lenha e tinha carroças. Lembro das jabuticabeiras no quintal. Cada um de nós tinha a sua e só podia brincar nela.
Os familiares de Pelé rumaram de diferentes cantos do Brasil para a inauguração da réplica da casa em Três Corações. Eles ficaram no mesmo hotel, almoçaram juntos, foram juntos para os eventos. Muitos aproveitaram para guardar alguma relíquia do parente famoso. Biroca tem autógrafos do ex-camisa 10 em duas bolas.
A casa
Pelé comemoração Três Corações especial (Foto: Alexandre Alliatti / Globoesporte.com)
O primeiro lar de Pelé foi erguido em menos de dois anos. Custou cerca de R$ 200 mil - detentos ajudaram na obra. Para que a construção fosse fiel, o cenógrafo Keller Veiga, da TV Globo, ouviu depoimentos da mãe de Pelé, dona Celeste, e de Jorge, tio dele. Não havia registro fotográfico da casa.
Com os relatos deles, foi possível recuperar detalhes do local: a distribuição dos quartos, os quadros, o berço, o fogão à lenha na cozinha. Tudo foi perdido com o tempo. Menos as jabuticabeiras, que seguiram lá, centenárias, com os mesmos galhos nos quais se penduraram as pernas que mais alegrias deram aos brasileiros.
galeria Pelé Três Corações Casa infância (Foto: Editoria de Arte / Globoesporte.com)

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